quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Vade retro, Acordo Ortográfico

No Domingo passado, lendo uma revista enquanto tomava o pequeno-almoço (que burguesa que eu sou), dei com os olhos numa coluna sobre o novo acordo ortográfico. O meu último post já mostrou o que eu penso do dito cujo. O conteúdo desta coluna ofendeu-me bastante, pois defendia que toda a gente – sim, mesmo as mentes mais sãs – deveria render-se e juntar-se a esta cruzada contra a Língua Portuguesa, já que, aparentemente, "adiar o momento em que passamos também a escrever segundo as novas regras só nos fará «estar atrasados», só fará de nós uns «cotas» agarrados a um passado que já não volta". Estou grata pela informação, mas tenciono ser então uma «cota» (de arquivo?) por muito tempo.

A minha indignação levou-me, por sua vez, a pensar se as vítimas dos anteriores acordos e reformas ortográficas teriam sofrido de semelhantes males de fígado. Recuemos a 1911, quando entrou em vigor a reforma ortográfica que simplificou a escrita do Português. A Lingerie Histórica foi para a rua entrevistar populares para tentar perceber como a substituição do ph por f, do th por t - entre outras - e a eliminação dos y (substituídos por i) afectou os comuns mortais.

Pessoa estava petrificado com o horror
da Reforma Ortográfica de 1911.
Encontrámos o primeiro popular enraivecido na esplanada da Brasileira:

«Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portugueza. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa propria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ipsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.»

Parece-me fácil adivinhar qual destes senhores
andava descontente com a fuga dos ys.
O Sr. Pessoa, já um pouco corado e de discurso entaramelado (apesar de serem só dez da manhã), parecia particularmente incomodado com o y a partir daí obsoleto. O sentimento parecia ser geral, pois a nossa vítima seguinte tinha queixas semelhantes:

«Na palavra lagryma, [...] a forma da y é lacrymal; estabelece [...] a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio... Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal.»

O Sr. Teixeira de Pascoaes preocupava-se ainda com a possibilidade de as lágrimas deixarem de rolar pelo rosto abaixo na bonita forma de um y, já que este cairia em desuso. Os leitores ficarão felizes por saber que, lá para os anos 40, a escrita de Teixeira de Pascoaes já não mostrava quaisquer vestígios de ys.

Comida impiedosamente atacada por um espetador em série.
Analisando as queixas dos nossos conterrâneos de 1911, concluímos que nós, em 2011, temos mais razão de queixa. A mudança de ph para f não afectava em nada a pronúncia das palavras; a mudança de espectadores para espetadores (é a minha preferida) é já bastante diferente. Quem nos garante que, daqui a uns anos, a população portuguesa saberá que o e deve ser aberto, na falta do c a abri-lo?

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