terça-feira, 31 de maio de 2011

"César é o homem de todas as mulheres e a mulher de todos os homens."

Se deixarem os esqueletos no armário demasiado tempo,
eles começam a dar festas ao fim-de-semana.
Os romanos nunca tiveram revistas cor-de-rosa, mas tiveram Suetónio. Tal como interessa hoje a largos sectores da população mundial ler sobre os escândalos em que se embrenham as figuras públicas, também interessava aos romanos conhecer os esqueletos nos armários dos seus governantes.

Suetónio, historiador, viu nesta necessidade do povo romano uma bela oportunidade de negócio. Aquilo a que nós, hoje em dia, chamaríamos "nicho de mercado". Pôs-se, pois, a escrever A Vida dos Doze Césares ou, simplesmente, Os Doze Césares. Começarei pelo princípio, que é por onde começam as melhores histórias (a moda de começar as coisas pelo meio só foi popular no tempo de Camões, e toda a gente se apercebeu rapidamente da impraticabilidade da coisa). Vamos então a Júlio César.

Este é o simpático esqueleto
chamado "Bissexualidade".
Não vou falar das suas conquistas militares e políticas, pois isso é o tipo de coisa que – por enquanto – ainda tem lugar nos programas escolares. Vou falar da pilha de ossos no roupeiro de César: o seu esqueleto de estimação chamava-se "Bissexualidade".

Ora teve o Júlio o azar de, na sua primeira campanha militar, se demorar mais do que seria próprio na corte do rei Nicomedes da Bitínia. Embora pudesse haver mais do que uma razão para tal demora – desarranjos intestinais; a comida e as instalações seriam certamente melhores do que as disponíveis nos acampamentos militares; etc. – César não mais se livraria da suspeita de ter tido "relações impróprias" com o monarca.

Apesar de tudo, Roma era um festim homoerótico.
Os romanos eram particulares neste aspecto. O problema não residia nas "relações impróprias", mas sim no facto de César ter sido a parte dita "passiva" do casal. Mas, ao contrário das histórias infelizes que se ouvem hoje em dia (que um desportista homossexual sofreu horrores no balneário devido à hostilidade dos seus colegas heterossexuais, passando-se algo semelhante com os militares), os soldados ao serviço de César não deixavam de o respeitar e de o admirar, apesar de saberem dos rumores. Faziam com eles, aliás, algo construtivo: inventavam canções.


"Todos os Gauleses César venceu, Nicomedes venceu-o a ele;
Vejam!, agora César cavalga triunfante, vitorioso sobre os Gauleses;
Nicomedes, que submeteu o conquistador, não triunfa."

(Presume-se que os versos soariam melhor em latim.)


De facto, os opositores andavam tão aborrecidos que decidiram
matar César à facada, ainda que isso lhes sujasse as togas.
Porém, os inimigos de César não eram tão flexíveis como os seus soldados, pois andavam extremamente aborrecidos com os trejeitos autoritários do homem. Logo, pegavam em qualquer coisa que pudesse manchar a sua reputação junto do povo romano: diziam que César era "a rainha da Bitínia", que era "o homem de todas as mulheres, e a mulher de todos os homens", que era careca. Curiosamente, o que mais ofendia César eram as alusões à sua lustrosa careca. Fragilizado por este cruel ataque à sua masculinidade, passava muito tempo a pentear os seus poucos cabelos para a frente, de modo a disfarçar as generosas entradas.

Notem-se as sobrancelhas
impecavelmente arranjadas.


Já que nos detivemos nos assuntos capilares, devo dizer-vos que Júlio César foi o primeiro metrossexual da História: Suetónio afirma que o ditador cuidava demasiado da sua aparência, submetendo-se mesmo à forma de tortura que, até há pouco, era quase exclusiva das mulheres do nosso tempo: a depilação.

sábado, 28 de maio de 2011

Aquilo que vocês nunca quiseram saber sobre o quotidiano na Roma Antiga

Lembro-me do dia exacto em que aprendi aquilo que nunca quis saber sobre a vida quotidiana na Roma Antiga. Foi há uns dois meses (talvez por isso me lembre tão bem).

Acompanhei a série Spartacus: Blood and Sand – estreada recentemente em Portugal com o ligeiramente disléxico título Spartacus: Sangue e Arena – quando se estreou no seu país de origem; e, entretanto, deixei-me embrulhar na sua prequela, exibida no início deste ano. Esta última (Spartacus: Gods of the Arena/Spartacus: Deuses da Arena) entretém-nos com as histórias do ludus(*) do manager extraordinaire de gladiadores Batiatus antes da chegada do inconveniente escravo trácio Spartacus ao estabelecimento.
(*) Escola de treino de gladiadores.

Construir uma rede clientelar é um assunto sério.
Antes de Spartacus vir estragar o arranjinho ao ludus de Batiatus, este último entretinha-se com o típico passatempo romano que consistia em conquistar uma sólida rede clientelar. O senhor vivia em angústia porque os seus gladiadores apenas combatiam ao fim da tarde, quando a atenção dos espectadores dos jogos se começava a esbater, para se concentrar em assuntos como o jantar e uma boa noite de sono. Isto significava que o seu ludus não gozava de grande reputação na cidade de Cápua, algo que seria necessário mudar se Batiatus quisesse ter os seus gladiadores nos primeiros combates do dia.


Algures no decorrer deste processo de socialização que resultaria, um dia, numa rede clientelar simpática, encontramos Batiatus no sítio mais social das cidades romanas. Não, não me refiro aos banhos públicos – isso não seria lá muito chocante. Refiro-me, claro, às latrinas públicas.

Se eu alguma vez me debruçara sobre este curioso conceito da sociabilidade das latrinas públicas, com certeza bloqueei essa particular memória. Naquele momento vi-me confrontada com o terrível conhecimento de uma forma extremamente rude e inesperada. Batiatus e um seu amigo, no meio de um passeio pelas ruas de Cápua e de uma discussão sobre estratégias comerciais, passam pelas latrinas públicas, onde Batiatus decide sentar-se ao lado dos restantes frequentadores das instalações e tratar das suas necessidades fisiológicas mais prementes, sem nunca interromper a conversa e sem se desviar do tema em debate.

Batiatus entrega a famosa esponja a um escravo.




Terminado o serviço, limpa-se com uma esponja fixada à ponta de um pau, de uso comunal. De uso comunal. Esta esponja era apenas mergulhada em água entre cada utilização.






As latrinas públicas enquanto espaço de socialização na Roma Antiga suscitam algumas questões. A mais evidente será: como acabámos por desenvolver timidez e vergonha no que diz respeito às nossas necessidades fisiológicas? Vou seguir uma linha muito popular e culpar a Idade Média e os seus pudores.

Batiatus recebe vários convites neste bonito local.

Talvez um dia possamos dispensar a privacidade nos lavabos públicos, o que conduzirá, certamente, a um aumento da produtividade no local de trabalho. Ainda assim, há algo de estranho em receber um convite para jantar em semelhante contexto.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

A maldição dos faraós



Em tempos, se alguém morria misteriosa e aflitivamente e esse alguém tinha andado a profanar túmulos egípcios, era bastante óbvio para toda a gente que o infeliz indivíduo tinha sido vítima da terrível maldição do faraó.

Hoje em dia, sabemos da existência de doenças estranhíssimas, muito mais assustadoras do que uma maldiçãozinha. Consequentemente, toda a magia desapareceu. Por outro lado, os filmes ensinaram-nos a temer as múmias. Se considerarmos racionalmente a coisa, elas são, na verdade, inócuas – afinal, estão mortas há milhares de anos –, mas são também mais assustadoras do que um esqueleto. Quando os antigos egípcios se lembraram de colocar inscrições ameaçadoras em alguns túmulos estavam igualmente a contar com o aspecto medonho das múmias aí sepultadas, pois perceberam que:

- Os egípcios seus contemporâneos não tinham medo de múmias, já que elas eram uma ocorrência relativamente normal naqueles tempos; contudo, as suas crenças/superstições (e uso a palavra enquanto ímpia ocidental do século XXI) desencorajá-los-iam de desejar demasiado ardentemente os tesouros encerrados nos túmulos.

- Inevitavelmente, daí a muitos anos, os ímpios ocidentais viriam bisbilhotar as areias do deserto. Era pouco provável que eles fossem tão supersticiosos como os antigos egípcios, mas a sua temeridade explodiria em mil bocadinhos quando se vissem frente a frente com uma temível múmia, pois por alguma razão a sua cultura judaico-cristã ensinara-os a ter medo dos mortos e das suas almas penadas.

Na realidade, para justificar qualquer morte após a abertura de um túmulo encerrado durante muito tempo poder-se-ia, provavelmente, invocar a mui científica frase "sabe-se lá o que anda a pairar pelo ar...". Mas uma maldição tem outra categoria.

Não é possível matar múmias a tiro. Elas já estão mortas.
Quando se fala de maldições, de faraós e de múmias, a primeira coisa que nos vem à cabeça é o túmulo de Tutankhamon. Ou talvez isso fosse dantes, pois agora toda a gente se lembra primeiro dos filmes da Múmia e do malvado sacerdote Imhotep. Voltando a Tutankhamon, é minha obrigação informar-vos da inexistência de qualquer inscrição amaldiçoante no seu túmulo. Apesar disso, quando o financiador da expedição que o encontrou e explorou, Lord Carnarvon, morreu quase cinco meses depois da abertura do túmulo a 29 de Novembro de 1922, levantaram-se de imediato vozes garantindo que a sua morte se devera à maldição. A ausência de uma maldição declarada não significava grande coisa, pois se "cão que ladra não morde", pode concluir-se, aplicando as leis da Filosofia do 10º ano, que "cão que não ladra, morde". Também o facto de o líder da expedição, Howard Carter, ter vivido ainda uns bons anos depois de violar desavergonhadamente o derradeiro local de descanso do faraó – já que foi ele próprio a abri-lo – não desencorajou os que acreditavam no poder mágico das múmias e das maldições.

Cuidado com as múmias que vos espiam pela janela.
Hoje acredita-se que Carnarvon morreu de uma picada de mosquito infectada, da qual veio a resultar uma septicemia. Se ignorarmos os sombrios presságios – como a cobra a comer o pobre canário de Carter, mas não é essa a sua natureza enquanto predadora? – e acreditarmos na Wikipédia, apenas 8 pessoas entre as 58 que estavam presentes aquando da abertura do túmulo morreram no espaço de uma dúzia de anos. Mesmo que as maldições tenham um prazo de validade alargado, é improvável que sejam responsáveis pelas mortes ditas naturais da maioria dos membros da expedição.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Et tu, Brute?

Esta coisa das últimas palavras… Não sei. Aprecio, como toda a gente, aquele momento emocionante num filme em que o grande estadista ou o grande general, no seu leito de morte, murmuram o queixume "Mas o meu trabalho está longe de acabado…!", ou em que a vítima de um crime passional amaldiçoa o seu assassino, que não mais terá paz porque será perseguido, até ao fim dos seus dias, por aquelas contundentes palavras. Mas será tudo isto um mito?

Júlio César não foge à regra, claro. Aliás, ele pode mesmo ter começado a moda (ou outros por ele).

César foi assassinado nos Idos de Março (dia 15) do ano 44 a.C. por vários senadores descontentes com as suas políticas. Na altura, era assim que se resolviam as desavenças. Se conhecem a obra Um Crime no Expresso do Oriente, de Agatha Christie, saberão que o propósito dos crimes perpetrados em grupo é o de dificultar a descoberta do culpado e do móbil do crime. Infelizmente, em ambas as situações tanto um como o outro eram bastante evidentes.

Vincenzo Camuccini, Morte de César (1798)
A cultura popular ensinou-nos que César, prostrado depois de sofrer algumas facadas, viu na multidão de senadores sedentos de sangue o filho da sua amante, Bruto. À boa maneira das telenovelas, os dois homens teriam desenvolvido, durante a sua convivência, uma relação de pai e filho, o que transformava a traição numa enorme bofetada. César terá, então, dito: "Tu também, Bruto?" ("Et tu, Brute?" ou, alternativamente, "Tu quoque, Brute, fili mi?"). Segundo a tradição, a frase teria sido proferida em grego – seria mesmo de esperar que César quisesse demonstrar a superioridade do seu intelecto e da sua educação ao mesmo tempo que se esvaía em sangue.

O senador à direita esqueceu-se do punhal, e usa a mobília.

O que parece demasiado bom dramático para ser verdade, provavelmente é-o. "Et tu, Brute?" foi usada em pelo menos duas peças de teatro quinhentistas: a entretanto perdida Caesar Interfectus (1582) de Richard Eedes e Julius Caesar (1599) de William Shakespeare. Tudo leva a crer que a história das últimas palavras de César se espalhara por aí, depois de um historiador romano do século I a elas ter feito menção. A sua propagação assemelha-se à dos mitos urbanos de hoje em dia, facto que se torna extraordinário quando nos lembramos que a Internet ainda não tinha sido inventada. Em sua justiça, o historiador que referi, Suetónio (c. 69/75 d.C. – c. 130 d.C.), embora admita que outros acreditavam que César pronunciara aquelas palavras, afirma que o ditador nada dissera. Plutarco (c. 46 d.C. – c. 120 d.C.) vai na mesma linha.

Como os tempos mudam e os mitos urbanos são derrubados, representações mais recentes da morte de César tendem a não favorecer os gestos largos e teatrais, gritos exagerados, gente a arranhar a cara e a arrancar cabelos. A série da HBO/BBC Rome (2005 – 2007) mostra César a morrer silenciosa e magistralmente. Depois de tantas punhaladas seria difícil falar.

P.S.: Faz falta alguma roupa suja neste post. Devo por isso acrescentar que César era epiléptico e bastante careca.

O que é lingerie histórica e onde posso comprá-la?

Desenganem-se aqueles que entraram aqui esperando encontrar informações sobre a roupa interior usada pelos romanos ou pelos revolucionários franceses, e também aqueles que pensaram que o termo "histórica" foi empregado na esperança de emprestar um ar legítimo e escolástico a um blog pornográfico.

A expressão "lingerie histórica" não é, infelizmente, da minha autoria. Há muitos anos, numa viagem pelo Portugal profundo com a minha mãe (professora de História) e alguns dos seus correligionários (professores de História), um culto senhor que me vou abster de nomear comentou que José Hermano Saraiva, que na altura fazia furor com o seu Horizontes da Memória – ou equivalente – era essencialmente um "vendedor de lingerie histórica". Evidentemente, não nomeei o autor desta frase porque o Sr. Saraiva pode conhecê-lo de algum lado e assim ficaria desfeita uma relação possivelmente proveitosa.

Lingerie histórica: as insignificâncias da História que são largamente conhecidas (ou não) e que podem (ou não) ser verdade; o "Foi aqui, precisamente aqui, que [inserir um facto ligeiramente escabroso, impossível de comprovar, que ninguém sabe se realmente aconteceu naquele metro quadrado de terreno]" popularizado por José Hermano Saraiva; factos chocantes sobre personagens históricas, comprovados ou não.

No decurso de uma fiável sondagem de opinião (realizada ao longo de vários anos, em conversas casuais com gente que fui conhecendo/encontrando fortuitamente, quando estas me perguntavam o que queria estudar/andava a estudar/estudei e eu respondia com a ignóbil palavra História), a crença geral é que a História é aborrecida e não serve para grande coisa. Claro que toda a gente pensa que a História é aborrecida. Os programas escolares não têm espaço para a lingerie! Como é que os estudantes se vão interessar pela matéria se não há em nenhuma parte uma menção a escândalos sexuais? Se não se encontra em nenhum manual escolar um belo assassinato? Eu ainda sou do tempo em que se especulava que o faraó Tutankhamon teria sido vítima de homicídio! Entretanto, já vieram dizer que a sua morte nada teve de misterioso. Que desilusão.

Pois bem. Eu não sirvo para vendedora. Aqui a lingerie histórica é grátis!