Esta coisa das últimas palavras… Não sei. Aprecio, como toda a gente, aquele momento emocionante num filme em que o grande estadista ou o grande general, no seu leito de morte, murmuram o queixume "Mas o meu trabalho está longe de acabado…!", ou em que a vítima de um crime passional amaldiçoa o seu assassino, que não mais terá paz porque será perseguido, até ao fim dos seus dias, por aquelas contundentes palavras. Mas será tudo isto um mito?
Júlio César não foge à regra, claro. Aliás, ele pode mesmo ter começado a moda (ou outros por ele).
César foi assassinado nos Idos de Março (dia 15) do ano 44 a.C. por vários senadores descontentes com as suas políticas. Na altura, era assim que se resolviam as desavenças. Se conhecem a obra
Um Crime no Expresso do Oriente, de Agatha Christie, saberão que o propósito dos crimes perpetrados em grupo é o de dificultar a descoberta do culpado e do móbil do crime. Infelizmente, em ambas as situações tanto um como o outro eram bastante evidentes.
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Vincenzo Camuccini, Morte de César (1798) |
A cultura popular ensinou-nos que César, prostrado depois de sofrer algumas facadas, viu na multidão de senadores sedentos de sangue o filho da sua amante, Bruto. À boa maneira das telenovelas, os dois homens teriam desenvolvido, durante a sua convivência, uma relação de pai e filho, o que transformava a traição numa enorme bofetada. César terá, então, dito: "Tu também, Bruto?" ("Et tu, Brute?" ou, alternativamente, "Tu quoque, Brute, fili mi?"). Segundo a tradição, a frase teria sido proferida em grego – seria mesmo de esperar que César quisesse demonstrar a superioridade do seu intelecto e da sua educação ao mesmo tempo que se esvaía em sangue.
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O senador à direita esqueceu-se do punhal, e usa a mobília. |
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O que parece demasiado
bom dramático para ser verdade, provavelmente é-o. "Et tu, Brute?" foi usada em pelo menos duas peças de teatro quinhentistas: a entretanto perdida
Caesar Interfectus (1582) de Richard Eedes e
Julius Caesar (1599) de William Shakespeare. Tudo leva a crer que a história das últimas palavras de César se espalhara por aí, depois de um historiador romano do século I a elas ter feito menção. A sua propagação assemelha-se à dos mitos urbanos de hoje em dia, facto que se torna extraordinário quando nos lembramos que a Internet ainda não tinha sido inventada. Em sua justiça, o historiador que referi, Suetónio (c. 69/75 d.C. – c. 130 d.C.), embora admita que outros acreditavam que César pronunciara aquelas palavras, afirma que o ditador nada dissera. Plutarco (c. 46 d.C. – c. 120 d.C.) vai na mesma linha.
Como os tempos mudam e os mitos urbanos são derrubados, representações mais recentes da morte de César tendem a não favorecer os gestos largos e teatrais, gritos exagerados, gente a arranhar a cara e a arrancar cabelos. A série da HBO/BBC
Rome (2005 – 2007) mostra César a morrer silenciosa e magistralmente. Depois de tantas punhaladas seria difícil falar.
P.S.: Faz falta alguma roupa suja neste post. Devo por isso acrescentar que César era epiléptico e bastante careca.
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