quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Vade retro, Acordo Ortográfico

No Domingo passado, lendo uma revista enquanto tomava o pequeno-almoço (que burguesa que eu sou), dei com os olhos numa coluna sobre o novo acordo ortográfico. O meu último post já mostrou o que eu penso do dito cujo. O conteúdo desta coluna ofendeu-me bastante, pois defendia que toda a gente – sim, mesmo as mentes mais sãs – deveria render-se e juntar-se a esta cruzada contra a Língua Portuguesa, já que, aparentemente, "adiar o momento em que passamos também a escrever segundo as novas regras só nos fará «estar atrasados», só fará de nós uns «cotas» agarrados a um passado que já não volta". Estou grata pela informação, mas tenciono ser então uma «cota» (de arquivo?) por muito tempo.

A minha indignação levou-me, por sua vez, a pensar se as vítimas dos anteriores acordos e reformas ortográficas teriam sofrido de semelhantes males de fígado. Recuemos a 1911, quando entrou em vigor a reforma ortográfica que simplificou a escrita do Português. A Lingerie Histórica foi para a rua entrevistar populares para tentar perceber como a substituição do ph por f, do th por t - entre outras - e a eliminação dos y (substituídos por i) afectou os comuns mortais.

Pessoa estava petrificado com o horror
da Reforma Ortográfica de 1911.
Encontrámos o primeiro popular enraivecido na esplanada da Brasileira:

«Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portugueza. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa propria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ipsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.»

Parece-me fácil adivinhar qual destes senhores
andava descontente com a fuga dos ys.
O Sr. Pessoa, já um pouco corado e de discurso entaramelado (apesar de serem só dez da manhã), parecia particularmente incomodado com o y a partir daí obsoleto. O sentimento parecia ser geral, pois a nossa vítima seguinte tinha queixas semelhantes:

«Na palavra lagryma, [...] a forma da y é lacrymal; estabelece [...] a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio... Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal.»

O Sr. Teixeira de Pascoaes preocupava-se ainda com a possibilidade de as lágrimas deixarem de rolar pelo rosto abaixo na bonita forma de um y, já que este cairia em desuso. Os leitores ficarão felizes por saber que, lá para os anos 40, a escrita de Teixeira de Pascoaes já não mostrava quaisquer vestígios de ys.

Comida impiedosamente atacada por um espetador em série.
Analisando as queixas dos nossos conterrâneos de 1911, concluímos que nós, em 2011, temos mais razão de queixa. A mudança de ph para f não afectava em nada a pronúncia das palavras; a mudança de espectadores para espetadores (é a minha preferida) é já bastante diferente. Quem nos garante que, daqui a uns anos, a população portuguesa saberá que o e deve ser aberto, na falta do c a abri-lo?

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Ligações Perigosas: Wenceslau de Moraes e as mulheres asiáticas


Ao contrário da sua dona, a Lingerie Histórica esteve de férias durante a maior parte do mês de Agosto. Talvez seja apropriado retomar o normal funcionamento do blog com uma história simples e directa sobre imersão cultural. Eis o segundo episódio da rubrica Ligações Perigosas: Wenceslau de Moraes e as mulheres asiáticas.

As roupas de Moraes causariam
sensação em Lisboa.
Wenceslau de Moraes era um militar da Marinha Portuguesa quando pela primeira vez viajou para Macau, em 1888. Dez anos mais tarde, mudar-se-ia definitivamente para o Japão. Quis o destino (ou o homem) que o Sr. Moraes não mais voltasse à sua pátria. Isto talvez tenha sido bom para ele, pois imagino que em Portugal, apesar da afamada tolerância portuguesa nascida de séculos de contactos com os mais variados povos, o acusariam do equivalente lusitano do britânico "going native", actividade de diletantes nada bem vista na Europa consciente da sua superioridade. Pois, pondo agora de lado a sua aclamada obra literária claramente favorável ao espírito japonês em detrimento do "ocidental" (coisa que a Europa ainda poderia perdoar, já que a literatura é um terreno pantanoso), Moraes cedo decidiu adoptar um modo de vida o mais próximo possível do japonês. Além disso, tinha já uma predilecção antiga por mulheres asiáticas.

Moraes com Ko-Haru e a família desta.
Em Macau, casara-se com Atchan, anglo-chinesa, de quem teve dois filhos. Quando se apaixonou pelo Japão e decidiu ali viver para sempre, Moraes abandonou a mulher e os dois filhos – infelizmente o conceito de responsabilidade paterna ainda não estava suficientemente desenvolvido – para, poucos anos mais tarde, se casar com uma gueixa japonesa, O-Yone. Quando esta morreu de doença, Moraes rompe todas as ligações que mantinha com o Estado português (era na altura Cônsul de Portugal em Kobe e Osaka e ainda oficial da Marinha Portuguesa) e, apesar da sua idade respeitável, vai viver com Ko-Haru, sobrinha de O-Yone. É felicidade de pouca dura, pois Ko-Haru morreria três anos depois, em 1916.

Diz-se que Wenceslau de Moraes morreu sozinho, numa noite de temporal, em 1929.

P.S.: Talvez seja uma boa altura para vos dizer que este blog nunca adoptará o novo acordo ortográfico. Será que também estou destinada a morrer sozinha no meu ódio por esta aberração?

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Como perder uma fortuna em duas gerações

Habituámo-nos a amaldiçoar as nossas circunstâncias e a crê-las responsáveis pelos nossos falhanços. Portugal está em crise – como sempre esteve e como raramente deixou de estar – porque sofre da mesma maldição que afecta todos os países da Europa do Sul: tem demasiado sol e calor, não conhece as provações de longos e frios Invernos e, devido ao império da Igreja Católica, nunca teve oportunidade de se familiarizar com aquela maravilha do mundo moderno que é a ética protestante.

A mim sempre me pareceu que a ética de trabalho protestante não podia ser tão infalível como a pintavam. Certamente, também no Norte europeu haveria indivíduos sem escrúpulos, preguiçosos, gastadores, mesmo apesar dos bons exemplos que os rodeavam? E no Sul da Europa não faltaria gente empreendedora com ódio ao calor.

Casa imponente: sinal de sucesso protestante.
O problema devia ser ainda mais recorrente do que eu imaginava. O primeiro romance de Thomas Mann, Buddenbrooks (1901), vem atestar esta teoria. Nele, conta-se a história do declínio de uma abastada família mercantil na Lübeck do século XIX, em apenas quatro gerações. Se tal coisa fosse, no mundo real, apenas uma excepção à regra, duvido que Mann se desse ao trabalho de escrever um grosso volume sobre o assunto.

Os pais, a filha, os irmãos, e o marido pegajoso.
Agora vou dizer algo que nunca pensei vir a dizer: não li o livro, mas vi o filme. Nele há tudo o que nos habituámos a ver num drama histórico: um pai bom negociante, gerindo um negócio com sucesso; uma filha que é obrigada a casar com um homem algo pegajoso, apesar de preferir um jovem estudante que conheceu numas curtas férias junto ao mar; um irmão consciencioso e um irmão estroina e hipocondríaco. Resultado? Após a morte do irmão consciencioso – que tomara as rédeas do negócio depois de o pai morrer de velhice ou de doença, ou ambas – a empresa foi à falência. Todos os pratos, pratas e bibelôs tiveram de ser vendidos. Por fim, até a casa; a irmã, única sobrevivente da família, sofre a afronta de ter de vender a sua mansão familiar a um amigo de infância que a assediara insistentemente desde os seus 6 anos.

Num país quente nada disto teria acontecido. Recordemos Sherlock Holmes e o que ele tinha a dizer sobre os povos mediterrânicos: são mais propensos ao assassinato. Assim, a filha teria matado o seu marido pegajoso antes de o seu pai lhe pagar o dote; o irmão estroina assassinaria o irmão ajuizado e, insuflado de coragem e finalmente consciente do seu valor, faria prosperar a empresa. E, provavelmente, o promissor herdeiro da família não teria morrido de tifo.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

O pior dia da vida de Afonso Costa

A Lingerie Histórica, em três meses de vida, viajou por Roma, Egipto, pelo comércio do grão-de-bico e pelas pilosidades humanas. Agora parece que se estabeleceu semi-permanentemente na Alemanha. Acabei de perceber que isto não é nada patriótico. A História de Portugal tem as suas lingeries, obviamente. Por isso, hoje recordaremos o belo dia de Verão em que Afonso Costa sofreu um acidente de eléctrico.

Afonso Costa esgana religiosos insuspeitos.
O Sr. Afonso Costa não era uma figura particularmente simpática. Esta opinião não sofreu grandes alterações no último século, visto que a imagem do republicano mais exibida aos estudantes portugueses e ao público em geral é aquela caricatura em que ele, coroado pelo Demónio, esgana dois pobres religiosos. Assim, não é de admirar que o acidente de eléctrico de Afonso Costa tenha servido para o ridicularizar – além de ter servido, obviamente, para lhe partir a cabeça.

A primeira vez que vi uma menção do acidente do Sr. Costa (pois nunca me dedicara a estudar o seu percurso de vida) foi no decorrer das minhas investigações para a tese de mestrado (vade retro, Satanás!). Um diplomata português no longínquo Japão oferecia os seus sentimentos e desejos de rápidas melhoras ao político, depois de ter sido informado do seu gravíssimo "acidente de viação". Quase consigo imaginar o telegrama enviado a todos os postos diplomáticos de Portugal no estrangeiro: "Honorabilíssimo Afonso Costa sofreu acidente viação STOP Ficou gravemente ferido STOP Na verdade atirou-se do eléctrico para meio Avenida 24 Julho por razões inconfessáveis STOP".

À direita, podem ver Afonso Costa a saltar do eléctrico.
A cartola que levava posta não protegeu a sua cabeça.
Pois foi isso mesmo que aconteceu. Afonso Costa, para além dos seus outros defeitos (nomeadamente o de esganar padres), ainda tinha a mania da perseguição. Quando, no dia 3 de Julho de 1915, viajava calmamente num eléctrico para Algés, foi surpreendido por um clarão e um estrondo provocados por um curto-circuito. Receando um atentado à sua importante pessoa, Afonso Costa saltou do veículo em andamento, espalhando-se ao comprido em plena Avenida 24 de Julho. A sua cabeça, apesar de dura, partiu-se.


Sinal de desprezo por Afonso Costa: o seu bilhete de lotaria
não chega sequer a um mísero milhão de euros.
A coisa não foi tão grave como parecia à primeira vista, porque o Sr. Costa foi mandado para casa lá para o fim desse mesmo mês. Os seus sonhos de poder ficaram, contudo, adiados, e a sua imagem foi (ainda mais) ridicularizada pelos seus opositores. Não se sabe se o estadista voltou a agraciar os eléctricos com a sua presença, ou se ficou demasiado traumatizado
com a experiência para o fazer.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Os símbolos são o que deles fazemos

Quando, no outro dia, andava em busca de material para o meu post sobre o Hindenburg, deparei-me com um aviso na Wikipédia que me relembrava que uma imagem do dirigível ostentava símbolos que podiam ser proibidos na Alemanha e em alguns outros países. Estes símbolos eram, claro está, as suásticas pintadas no Hindenburg. Já conhecia, em linhas gerais, esta proibição, mas decidi recorrer ao detective privado favorito de toda a gente (o Google) e descobrir até que ponto a suástica é proibida, de facto, na Alemanha.

É preciso ressalvar aqui que a suástica não foi inventada pelos nazis. É um símbolo que tem feito aparições ao longo dos séculos em cerâmica grega, em construções e decorações romanas, um pouco por toda a Europa pré-cristã – com maior prevalência no Norte –, e era até usado por algumas tribos nativas americanas. E, claro, na Ásia, particularmente na Índia. É neste continente que a suástica continua a ser usada com grande frequência, já que surge associada ao Hinduísmo, Budismo e ao Jainismo. É por esta razão que, no caso de encontrarem na loja dos chineses da vossa zona uma caixa para jóias ornamentada com suásticas, não devem olhar de lado os donos do estabelecimento. (Encontrei uma destas caixas há uns anos. Parece-me que o produto não terá grande saída em terras ocidentais.)

A Zara passou a olhar com mais atenção
para as fotos dos produtos.



Mas para o ocidental comum, a suástica é o símbolo do mal. Especialmente se se apresentar negra, inclinada a um ângulo de 45°, e rodeada de branco e vermelho. Tanto assim é que, no longínquo ano de 2007, a cadeia espanhola Zara teve de retirar das suas lojas uma mala com um padrão que incluía suásticas devido à queixa de um cliente. Sabendo das políticas das multinacionais de vestuário, é legítimo concluir que o tecido (ou a mala inteira) teria sido importado de um país asiático. Mas nenhuma justificação, mesmo invocando os benefícios da multiculturalidade, poderia salvar aquelas malas num país ocidental.




Na Alemanha, Áustria, e alguns outros países directamente envolvidos na Segunda Guerra Mundial, a exibição pública da suástica é proibida e punível por lei.

Por estas e por outras razões (imprecisões históricas, etc.)
Música no Coração não fez muitos fãs na Áustria e Alemanha.
Se quiserem comprar, na Alemanha, um kit de modelismo de um avião ou tanque alemão da Segunda Guerra, não encontrarão na caixa os devidos decalques das suásticas; se aspirarem ao realismo, terão de as desenhar à mão. Existem, obviamente, excepções à proibição: a suástica pode ser usada em contextos históricos e educativos. O que é conveniente, já que, se assim não fosse, os inúmeros filmes alemães e austríacos envolvendo estes símbolos nazis teriam de ser censurados nos seus países de origem.

Para sairmos um pouco da parte germanófona da Europa e também para deixarmos a suástica em paz, recordemos que em vários países da Europa de Leste outros símbolos foram também banidos: a foice e o machado, a estrela vermelha. Pois também estes são considerados símbolos de uma ideologia totalitária e criminosa – o comunismo soviético.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Hindenburg, o dirigível que se livrou de um terrível nome

O Hindenburg na sua passagem por Lisboa
em 1936.
O dirigível alemão Hindenburg começou a sua curta vida envolto em polémica. Ele contentar-se-ia, sem dúvida, em flutuar descuidadamente sobre os verdejantes campos alemães e sobre o interminável Atlântico, mas muitos humanos são movidos por motivações mesquinhas e acabaram por arruinar o início de vida do gigante paz-de-alma por uma coisa tão insignificante como o seu nome.

Notem o óbvio contentamento que o LZ 129 sente a flutuar,
apesar do seu nome infeliz.
Como todos os meios de transporte, ao Hindenburg foi atribuído um nome técnico genérico (LZ 129). Durante algum tempo foi este o único nome pelo qual foi conhecido, mesmo quando já fazia uns voos de teste pelos céus da Alemanha em 1936. Aparentemente, o matreiro presidente da companhia que o construíra – o Dr. Eckener – já tinha escolhido um nome para o seu bebé, mas lá terá achado que era melhor calar-se durante uns tempos, já que os nazis no poder não estavam para brincadeiras. Tanto assim foi que, nos primeiros voos que efectuou, o LZ 129 apenas ostentou no casco o seu aborrecido nome de registo e os cinco anéis olímpicos que faziam publicidade aos Jogos Olímpicos de Berlim (1936). E, claro, as suásticas.

Mas lá chegou o dia em que o Presidente da Câmara de Munique estragou os cuidadosos planos de Eckener. Estava o LZ 129 a passar sobre aquela cidade quando o intrometido autarca quis saber o nome do dirigível, sem dúvida porque seria mais bonito mencioná-lo com um nome de jeito num dos seus discursos à populaça. Eckener lá teve de responder "Hindenburg", ao mesmo tempo que receava que o céu desabasse sobre a sua cabeça. O que veio, de facto, a acontecer no dia seguinte, quando Eckener foi chamado à presença de Goebbels para uma descasca.

Mas as letras de 1.80m eram difíceis de ignorar.
"Olha, papá, o Hindenburg!"
"Cala-te, Hans, antes que alguém te ouça!"
O Ministro da Propaganda estava visivelmente irritado e exigiu que o Hindenburg fosse rebaptizado como Adolf Hitler. Face à recusa de Eckener, Goebbels determinou que o dirigível seria conhecido na Alemanha apenas por LZ 129 (ooooh, a indignidade!) e ameaçou fazer desaparecer o próprio Eckener da comunicação social alemã. A abordagem típica do “se-o-ignorarmos-ele-deixa-de-existir”, também usada por Estaline nas suas fotos com camaradas indesejáveis. Três semanas mais tarde, o nome Hindenburg foi pintado no dirigível em letras grandes e vermelhas (toma e embrulha, Goebbels!). Não se realizou a usual cerimónia de baptismo, mas o Hindenburg não se importou, porque estava feliz e nada poderia arruinar aquele belo momento.

Quando, a 6 de Maio de 1937, o Hindenburg pereceu, Goebbels suspirou de alívio por não ter conseguido levar a sua avante. Ficaria bastante mal Adolf Hitler ser consumido por chamas impiedosas em solo americano.

domingo, 10 de julho de 2011

Dentro do Führerbunker

Foi manifestado algum interesse pelo Führerbunker via e-mail. Recomendo vivamente uma visita à galeria da revista Life. Aí encontrarão fotografias muito boas do interior do bunker e da Berlim destruída.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Porque usar pessoas como cobaias é sempre uma má ideia

Porque o Homem, dito "animal pensante", é capaz de usar a sua mente racional para cogitar as coisas mais perturbadoras.

Depois da Segunda Guerra Mundial, levantou-se frequentemente a questão da obediência cega a uma/várias figura(s) de autoridade e se os que obedeciam partilhavam a mesma culpa dos que mandavam. Como está na natureza humana querer ter resposta para tudo, realizaram-se em universidades dos Estados Unidos da América várias experiências que pretendiam apurar, de uma forma ou de outra, até onde uma pessoa poderia ir, independentemente dos valores e crenças que afirmava ter.

A experiência Milgram mostrou que "seguir ordens"
nem sempre é louvável.
A experiência Milgram, iniciada em 1961, destinava-se a avaliar a obediência a figuras de autoridade, medindo o grau de obediência dos participantes a ordens que entravam em conflito com a sua consciência pessoal. Ao voluntário era atribuído o papel de professor, e um actor era colocado no papel do aluno/aprendiz. Claro que os voluntários não faziam ideia que este homem era um actor. O voluntário recebia então uma lista com palavras que deveria ensinar ao aluno, juntamente com um botão que, quando accionado, daria um choque eléctrico ao aluno. Este devia ser usado quando o aluno cometesse um erro ao recitar as palavras. Na verdade, não eram administrados quaisquer choques, mas o actor era bom e fazia o voluntário crer que se encontrava num sofrimento horrível. Se o voluntário desse sinais de querer parar com a experiência, o responsável instigá-lo-ia verbalmente. Surpresa: muitos voluntários continuaram a administrar choques eléctricos quando o "aluno" já parecia morto.

Mas dentro desta coisa das experiências com cobaias humanas, nada ultrapassa a experiência prisional da Universidade de Stanford, em 1971. Um respeitável professor de Psicologia achou que seria interessante recrutar uns quantos estudantes do sexo masculino e dividi-los em dois grupos: um de guardas prisionais, outro de presos. Os presos teriam de permanecer durante 14 dias numa cadeia construída para o efeito numa cave da universidade, e os guardas prisionais fariam, obviamente, de guardas prisionais. Estes trabalhavam por turnos, o que significa que podiam ir a casa e fazer as suas vidas. Os presos estavam... presos.

Depressa as cobaias se começaram a adaptar demasiado bem aos papéis que lhes haviam sido atribuídos: os presos amotinavam-se e os guardas usavam violência psicológica para os controlar, uma vez que a violência física estava, no âmbito da experiência, proibida. Entretanto, alguns presos exibiam claros sinais de instabilidade mental. Até o próprio Professor, que em vez de se distanciar da experiência escolhera nela participar activamente – enquanto superintendente da prisão – interiorizou o seu papel de tal maneira, que optou por ignorar o comportamento abusivo dos guardas.

A experiência de Stanford foi recriada no filme alemão Das
Experiment
. A Alemanha tem a tradição de confrontar
cinematograficamente o seu passado.
A experiência foi interrompida ao fim do sexto dia, quando uma colega do professor questionou a moralidade de tais actos. De entre as 50 pessoas que supervisionavam a experiência, foi a única. Recordemo-nos que as cobaias seleccionadas pertenciam à classe média, não tinham cadastro criminal, problemas psicológicos ou médicos. Apesar da aparente normalidade dos intervenientes, quem sabe o que teria acontecido se a coisa tivesse realmente durado os 14 dias previstos...

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Santuários nazis e o mercado imobiliário

No outro dia li no jornal que tinha sido posta à venda a "casa" onde a família Goebbels viveu entre 1936 e 1943. O artigo era ambíguo – como tendem a ser, hoje em dia, os artigos do Diário de Notícias, que decidiu dar emprego a vários "jornalistas" que não sabem sequer escrever – e, naturalmente, estranhei que a casa de Goebbels tivesse sido deixada em pé após o final da guerra. Afinal, a febre demolidora de edifícios conotados com o passado nazi da Alemanha é sobejamente conhecida.

Uma pequena amostra da propriedade que pode ser vossa
por uma módica quantia.
Fui então investigar e descobri com grande facilidade (abençoado Google) que a propriedade que se encontra à venda não inclui a casa de Goebbels – que foi, como seria de esperar, arrasada –, mas tem outros atractivos: uma área de 6440 metros quadrados na exclusiva ilha de Schwanenwerder, Berlim, uma praia de 83 metros e muitas arvorezinhas. Não foi fixada uma licitação mínima, por isso, se estiverem interessados, podem fazer ofertas ao município de Berlim até 22 de Agosto. Se estiverem preocupados com a falta de alojamento (presumo que não queiram passar o Inverno alemão numa tenda), fiquem a saber que a bonita casa de Goebbels cedeu o lugar a um modesto e funcional bungalow de tijolo, erigido nos anos 50.

Mas o bunker ria-se na cara das autoridades soviéticas
e dos seus explosivos.
Já que andamos de volta do assunto do mercado imobiliário, falemos da demolição da última morada de Goebbels, o Führerbunker. Durante muito tempo, a sua localização foi ocultada, pois as autoridades receavam que se tornasse local de peregrinação nazi. O próprio conceito de “peregrinação nazi” é problemático pelas suas conotações religiosas, mas adiante. A verdade é que, após um saque bastante completo logo em 1945, as autoridades soviéticas decidiram demolir o bunker em 1947. Tentaram uma vez. Depois voltaram a tentar (1959). E ainda mais outra vez (1988 – 89).

Os prédios feiosos e o nada glamoroso
parque de estacionamento.
Aparentemente, o bunker tinha sido construído para durar, pois recusava-se a morrer. O problema é que este complexo subterrâneo se encontrava numa parte bastante central da cidade, muito apetecível para os patos-bravos. Durante os trabalhos de construção de edifícios bastante feiosos em finais da década de 80/início da década de 90 destruiu-se o que se pôde do bunker de Hitler e encheu-se de entulho o que ficou. Por cima fez-se um parque de estacionamento. Talvez fosse este o fim adequado para o último bastião do III Reich.

Em 2006 as autoridades cederam e inauguraram uma placa marcando o local do Führerbunker, e os locais provavelmente suspiraram de alívio, fartos como estavam das perguntas dos turistas sobre a localização do complexo.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

A triste sina do pêlo

O pêlo foi sempre o habitante mais indesejável do corpo humano. Actualmente, essa honra pertence aos micro-organismos menos simpáticos – algumas bactérias, vírus, parasitas et al. – mas os pêlos ainda vêm em segundo lugar.

Tenho a certeza que os pêlos deverão servir algum propósito obscuro, caso contrário teriam sido já eliminados pelo processo evolutivo. Não obstante, o ser humano dedicou-se, desde cedo, a apagar todos os vestígios de pilosidades indesejáveis. Estando as Gillettes a uns séculos de distância, as pessoas tiveram de ser criativas.

Há algo de estranho em rapar cabelos para depois
se usarem perucas. Mas pensem nos piolhos.

Antes de o Homem ter percebido que poderia usar lâminas fabricadas especialmente para o efeito (havia também o incómodo problema de ele ainda não ter aprendido a trabalhar o metal), foi obrigado a servir-se de coisas que a Natureza lhe fornecia em abundância: um par de conchas – usadas como pinça –, pedra lascada, dentes de tubarão. Tudo indica que tenham sido os egípcios os primeiros a usar lâminas de metal na sua depilação diária, o que viria inaugurar uma longa era de acidentes depilatórios embaraçosos.


"Barbeai-vos, e sereis
recompensados!"



Apesar de tudo, muitos homens não veriam qualquer problema em passear enormes barbas e, presumivelmente, muitas mulheres também não se importariam com as suas pernas hirsutas. Alexandre, o Grande veio, porém, incutir novos hábitos aos seus seguidores, pois estava farto de assistir a desaires militares provocados por puxões nas barbas dos seus soldados.




Mas parece que Adriano apenas usava barba para esconder
a sua má pele. As mulheres não tinham esta opção.
Os romanos, se eram gente prática em muita coisa, não o eram quando se dispunham a depilar-se. Júlio César preferia que lhe arrancassem os pêlos da barba um a um, com uma pinça – resta saber como arranjava tempo para legislar e entrar em guerras –, enquanto os seus conterrâneos se livravam das suas pilosidades faciais e corporais esfregando uma pedra-pomes na pele (sim, tudo parece indicar que os romanos eram masoquistas). Felizmente, parece que alguns escolhiam evitar o sofrimento usando lâminas. A moda das barbas apenas seria reintroduzida em Roma pelo imperador Adriano (76 – 138 d.C.), que adornava a sua cara com uma bem cuidada barba.

Entretanto, as mulheres – sempre engenhosas – inventavam cremes depilatórios. O que não é surpreendente, visto que a alternativa era uma pedra-pomes. Ou um acidente com uma lâmina afiada.

Gillette também fez dinheiro vendendo
lâminas a bebés. Que vergonha.



Até à invenção de lâminas mais ou menos seguras, os homens eram obrigados a ter arte e uma mão firme no momento de se barbearem, ou a entregar o serviço a um barbeiro profissional e esperar que ele não tivesse bebido demasiado na noite anterior. Apenas em finais do século XIX seriam inventadas as lâminas de segurança, com um dispositivo que evitava feridas graves. Daí até à invenção das lâminas descartáveis foi um instante. Desde então, a marca Gillette tem acumulado milhões, tudo porque o seu fundador percebeu que vender um aparelho barato com lâminas recarregáveis caras encheria os seus bolsos. É o capitalismo em acção.

sábado, 18 de junho de 2011

O bordel espião

Pergunto-me se o GoogleMaps também fornece indicações
de bons bordéis, como faz com os restaurantes.
Na Berlim dos anos 30, no número 11 da Giesebrechtstrasse, funcionava alegremente um bordel chamado Pensão Schmidt. Apesar do engenhoso disfarce fornecido por este nome, toda a gente devia saber que ali não se oferecia apenas cama e pequeno-almoço. Desenvolviam-se no número 11 todas as actividades típicas de um bordel, com a particularidade de os participantes nas ditas actividades serem dignitários alemães e diplomatas estrangeiros – tudo gente importante.

Os desordeiros SAs.
A meio do ano de 1939, os mais atentos já previam o início de uma guerra. Os ainda mais atentos já a previam desde 1933. Neste último grupo incluía-se, provavelmente, a proprietária da "pensão", Kitty Schmidt, que vinha sendo incomodada por uma polícia já não muito tolerante dos vícios berlinenses, ao mesmo tempo que assistia à substituição da sua clientela tranquila por uma data de SAs desordeiros. Assim, a Madame decidiu dedicar parte do seu tempo (aquele que não passava a assegurar o bom funcionamento do bordel) a transferir o seu dinheiro, pouco a pouco, para bancos britânicos, através de refugiados judeus que ajudava a sair do país. O problema veio quando Kitty se dispôs a gastar os frutos do seu trabalho, tendo para isso de abandonar a Alemanha. Em Junho de 1939 saiu de Berlim com um passaporte falso, mas foi apanhada na fronteira por homens do SD – os serviços secretos das SS – que já a tinham debaixo de olho. Aí, a Madame recebeu uma proposta indecente.

Heydrich tenta interessar Himmler nos seus planos, mas este
prefere assegurar-se que fica bem na fotografia.
O manda-chuva do SD, Reinhard Heydrich, tinha tido a brilhante ideia de usar um bordel para espiar gente importante e ver se alguém dizia mal da causa nazi. Heydrich pensou, com admirável lógica, que homens sob a influência de bebidas espirituosas e de belas mulheres sem roupas teriam as línguas necessariamente mais soltas. Estando o SD cheio de indivíduos de espírito prático, cedo se tornou claro que ficaria mais barato requisitar um bordel inteiro do que ter a chatice de se infiltrar num. Quando teve de escolher entre ir para um campo de concentração ou ajudar o SD neste seu plano diabólico, Kitty não terá tido grandes dúvidas.

Hábil recriação do Salon Kitty com letreiro de néon
à maneira de Las Vegas.
A Pensão Schmidt ficou uns meses fechada para obras, para tristeza dos seus clientes. O que estes últimos não sabiam era que o interior do edifício estava a ser artilhado com aparelhos de escuta de última geração. Entretanto, a polícia de Berlim realizava rusgas diárias em bordéis e outros sítios mal frequentados para reunir algumas prostitutas que seriam depois submetidas a um treino especial de espionagem. Quando reabriu as suas portas, de cara lavada, o bordel agora chamado Salon Kitty tinha vinte novas raparigas para uso exclusivo de uma clientela especial, que se identificaria através de uma frase-código: "Venho de Rotemburgo". O código foi então astutamente espalhado por entre selectas figuras do aparato militar nazi e do corpo diplomático estrangeiro. É, contudo, lamentável que após tamanhas manobras de espionagem o código fosse tão pouco glamoroso.

Depois de entreter inúmeros e indiscretos clientes de alto gabarito, o Salon Kitty sofreu em Julho de 1942 um ligeiro bombardeamento que obrigou a uma pequena relocalização das instalações. Conscientes de que um edifício meio destruído fazia pouca figura, o SD abandonou o projecto. Madame Kitty saiu a ganhar: as vinte raparigas especialmente treinadas em línguas estrangeiras, combate corpo-a-corpo, política externa, economia, e sabe-se lá em que mais ficaram ao seu serviço.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Narizes na História: Cícero

Se têm lido este blog com atenção, já devem ter percebido que os romanos tinham alguns hábitos questionáveis. Um desses hábitos consistia em adoptar os cognomes mais ridículos e fazer deles bandeira, passando-os a filhos, netos, e por aí em diante, sem sequer pensar nas implicações que tal alcunha poderia vir a ter, por exemplo, numa carreira política.

Infelizmente, Cícero tinha um nariz normal.
Nem um grão-de-bico à vista.
Debrucemo-nos sobre o caso de Cícero. Habituámo-nos a chamar-lhe assim, mas ele era "Marco Túlio", e Cícero era o seu cognome de família. Reza a História (ou Plutarco) que esta alcunha foi dada a um dos antepassados de Cícero, que teria um sulco na ponta do nariz comparável ao que se encontra nos grãos-de-bico (cicer, em latim). Alguns acham mais provável que a alcunha se devesse ao facto de os antepassados de Cícero terem prosperado no cultivo e comércio de grão-de-bico, mas isso é gente que gosta de arruinar uma boa história. O que será melhor para um candidato a uma carreira política de sucesso em Roma?

1) Um antepassado com um nariz imponente
2) Antepassados agricultores de leguminosas

Pois, bem me parecia.

Os romanos e as leguminosas tinham uma coisa em comum:
viviam em promiscuidade.
Aparentemente, a estranheza da coisa levou alguns conhecidos de Cícero a insistir que ele mudasse o seu nome quando entrou na política, mas o famoso orador recusou. A mudança confundiria muita gente – isso é óbvio – mas a verdade é que Cícero não via razão para se dar a esse trabalho quando, afinal, muitos dos seus pares carregavam o fardo de nomes igualmente ridículos: Fábio (faba ou fava), Lentulo (lentes ou lentilha), Piso (ervilha)...

Tentemos não pensar demasiado nas razões deste fascínio dos romanos pelas leguminosas.

sábado, 11 de junho de 2011

O mistério da súbita popularidade de Hitler

Não falo do Hitler histórico. A popularidade desse, felizmente, tem-se mantido baixa desde a sua morte (vamos ignorar aqueles que juram a pés juntos que ele fugiu para a América do Sul e está vivo ainda hoje, numa praia paradisíaca, a beber daiquiris por uma palhinha colorida. Se o leitor for da mesma opinião, vá-se tratar, porque o Hitler teria 122 anos se fosse vivo, não haveria daiquiris que lhe valessem). Falo do Hitler interpretado por Bruno Ganz no filme Der Untergang.

Fazer troça de Hitler tem sido passatempo de muita gente desde tempos imemoriais (ou, pelo menos, desde a década de 1930, porque antes disso quase ninguém o conhecia). O pioneiro desta arte foi Charlie Chaplin, com o filme O Grande Ditador, de 1940. Chaplin é o maior dos parodiantes de Hitler porque gozou com ele enquanto o homem ainda estava vivo, e isto foi obviamente um grande feito. Actualmente, temos de nos contentar com fazer troça de Hitler com ele já bastante morto mas, para compensar, podemos recorrer ao auxílio das novas tecnologias para criar paródias cada vez mais interessantes.

Der Untergang chegou aos cinemas em 2004 e, desde então, deu origem a milhares de paródias que podem ser encontradas, na sua maioria, no Youtube. Não me admira, porque o filme é mais assustador do que sei lá o quê e a única forma de lidar com ele depois de o ver de fio a pavio uma vez é voltar a vê-lo através das ditas paródias.

Nestes vídeos normalmente curtos, o bunker onde Hitler passou os seus últimos dias transforma-se num manicómio cheio de pacientes sob o efeito de drogas. Aproveitando o facto de muita gente não entender alemão, tudo o que os intervenientes dizem é adulterado por legendas disparatadas. O efeito cómico é maximizado pela quase constante fúria de Hitler. Entre muitas outras coisas, Hitler aprecia os dotes musicais de um homem russo que consegue cantar uma música sem letra, perde o seu fiel ajudante-de-campo para o ditador de um país desconhecido, treina para operador de call-center

Quem está familiarizado com a Internet conhece a sua incrível capacidade de transformar qualquer coisa numa anedota. Até Hitler, que é provavelmente o indivíduo menos hilariante de todos os tempos. Podia agora lançar-me numa tirada sociológica/antropológica explicando as razões desta necessidade de nos rirmos de Hitler, mas não o farei porque não percebo grande coisa de Sociologia ou Antropologia. Deixar-vos-ei apenas um aviso: se forem até ao Youtube ver estas paródias, cuidado; quando voltarem a olhar para o relógio, terão passado cinco horas. É assim a Internet.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Ligações Perigosas: Hitler e o Rato Mickey




Hoje inauguro aqui no blog a rubrica "Ligações Perigosas". As primeiras vítimas: Hitler e o Rato Mickey.
Se pensam que é improvável que estes dois tenham tido uma tórrida ligação, digo-vos que a sua relação teve todos os ingredientes de uma telenovela de sucesso:

Fase 1: paixão assolapada.
Fase 2: amor sincero.
Fase 3: traição e desespero.
Fase 4: renegação e vingança.

A 22 de Dezembro de 1937, o Ministro da Propaganda Goebbels escrevia no seu diário perfumado:

"Ofereci ao Führer 12 filmes do Rato Mickey como presente de Natal! Ele ficou muito contente com este tesouro."

Goebbels, Goebbels… Devias ter-lhe dado uma gravata.

Assim começou (ou continuou) a paixão não correspondida de Hitler pelo Rato Mickey.

Numa entrevista, o filho de Albert Speer, arquitecto e Ministro do Armamento do Reich, conta que quando se deslocava com o pai à mansão de Hitler nas montanhas, entretinha-se a ver filmes do Rato Mickey no cinema privado do Führer.

Mas esta felicidade não podia durar para sempre, pois Walt Disney, alheio aos sentimentos que a sua personagem despertara no coração do líder da Alemanha Nazi, usava os amigos do Rato Mickey para fazer propaganda contra Hitler e os seus seguidores. Embora um filme protagonizado pelo Rato já tivesse sido proibido na Alemanha em 1930, a guerra foi, digamos, a última gota: em 1941, Mickey foi declarado inimigo do Estado e banido da Alemanha. Perante o perigo de revelar a hipocrisia dos dirigentes nazis, Goebbels teve de manter o seu presente de Natal em segredo. Toda a gente sabe que a melhor maneira de manter uma coisa em segredo é confiá-la a um querido diário.

sábado, 4 de junho de 2011

História periódica

Perigo para alguns homens. Ouvi dizer
que vocês não gostam de períodos.

Periodicamente, no decorrer de uma conversa normal, a minha mãe e eu interrogamo-nos sobre a forma como as mulheres lidavam com a menstruação antes de estarem disponíveis no mercado os mais variados produtos de higiene feminina. Não me perguntem como as conversas vão aí parar. A minha mãe, tendo vivido parte da sua juventude numa diminuta aldeia da Beira Alta, sempre defendeu uma teoria baseada nas suas observações de algumas senhoras da povoação. As suas saias compridas e a falta de roupa interior permitir-lhes-iam não usar qualquer dispositivo absorvente durante aquela altura do mês, e o rasto de sangue que deixavam atrás de si seria provavelmente camuflado pelas ervas e poeira que inundavam os caminhos da aldeia.

Embora esta explicação parecesse bastante plausível, há qualquer coisa na mentalidade feminina do século XXI que se revolta contra tal indignidade. Assim, voltei-me para a Internet – que, até hoje, nunca me desiludiu – e descobri que a minha mãe tinha, em parte, razão (ela vai ficar contente com isso).

Hoje em dia os tampões são mais estéticos e confortáveis.
Às vezes até têm caras e falam connosco.
Antes de chegarmos à parte onde vos falarei das adeptas do fluxo livre, frisarei que, mesmo antes da era cristã, as mulheres de várias culturas tentaram resolver o seu problema periódico com as matérias-primas que tinham mais à mão. No Egipto, usar-se-iam tampões feitos de papiro amolecido; em África, ervas enroladas (ouch); no Japão, talvez polpa de papel; nas ilhas do Pacífico, esponjas marinhas; na Grécia Antiga, bocados de madeira envolvidos em tecido. É também possível que estes dispositivos servissem uma outra função – esta contraceptiva (vendo os materiais usados, parece-me que ficavam bastante desiludidas quando ao fim de 9 meses lhes aparecia uma surpresa em forma de bebé).

Como se não bastasse o inconveniente da menstruação propriamente dita, os homens antigos ainda se lembraram de inventar que as mulheres, enquanto afligidas por esta condição, arruinariam inevitavelmente boa comida e a prosperidade da agricultura. O estudioso romano Plínio apresentou isto como facto científico, e a moda continuou até ao século XIX, altura em que respeitáveis jornais médicos da respeitável Grã-Bretanha ainda afirmavam que mulheres com o período eram cientificamente incapazes de fazer conservas de carne. Entretanto, em França, as mulheres sofrendo esta maldição não podiam trabalhar nas refinarias de açúcar, pois estragariam o produto.

Actualmente já há quem faça a personalização
dos pensos por nós.
Aparentemente, no século XVIII já as mulheres tinham aperfeiçoado a arte de criar produtos menstruais, e as mais cuidadosas (ou as que estavam melhor na vida) faziam pensos de tecido, alguns com enchimento de algodão que podia ser substituído. Estas senhoras também concediam um toque claramente feminino às suas criações, personalizando os seus pensos com bordados. É admirável a sua atenção aos pormenores, mesmo em algo que se ia sujar bastante e não duraria muito.

Entre isto, corpetes, armações de saias e cintos de ligas,
as mulheres passeavam mais arreios do que um cavalo.
Lá para o fim do século XIX resolveu-se finalmente o grande problema destes produtos artesanais, com a invenção do cinto menstrual. Este, equipado com dois ganchos que seguravam o penso no sítio devido, foi a salvação de muitas peças de vestuário vítimas de inundações por má colocação do dispositivo. Foi também por esta altura que começaram a ser vendidos pensos higiénicos descartáveis, que inicialmente não tiveram grande sucesso porque as mulheres sentiam embaraço ao comprá-los.

Enquanto algumas senhoras eram abençoadas com a disponibilidade e os meios para fazerem bonitos pensos higiénicos, outras – a maioria, tudo indica – não usavam nada. Afinal, o uso de roupa interior não se encontrava generalizado e o bloqueio do fluxo menstrual era visto como pouco saudável. Antes que comecem a pensar no inconveniente de tal coisa, é necessário considerar que não havia tantos períodos como hoje em dia. O que entre nós é uma maldição mensal era antigamente uma maldição irregular: a menstruação começava mais tarde e acabava mais cedo; as mulheres passavam grande parte do tempo grávidas e a amamentar; havia muitas mulheres malnutridas e doentes.

Escondam as vossas vergonhas.

O século XX foi propício (finalmente) à emancipação das mulheres e dos seus períodos. Nos anos 20 os pensos higiénicos descartáveis começaram a ter mais saída, e nos anos 50 os tampões comerciais tornaram-se populares. Mesmo assim, estes últimos eram vendidos com uma caixa decorada, presumivelmente para esconder a vergonha que é ter o período e usar tampões. Mais ou menos como hoje em dia se vendem caixas para esconder os maços de tabaco que proclamam aos sete ventos: “Fumar mata.”.

terça-feira, 31 de maio de 2011

"César é o homem de todas as mulheres e a mulher de todos os homens."

Se deixarem os esqueletos no armário demasiado tempo,
eles começam a dar festas ao fim-de-semana.
Os romanos nunca tiveram revistas cor-de-rosa, mas tiveram Suetónio. Tal como interessa hoje a largos sectores da população mundial ler sobre os escândalos em que se embrenham as figuras públicas, também interessava aos romanos conhecer os esqueletos nos armários dos seus governantes.

Suetónio, historiador, viu nesta necessidade do povo romano uma bela oportunidade de negócio. Aquilo a que nós, hoje em dia, chamaríamos "nicho de mercado". Pôs-se, pois, a escrever A Vida dos Doze Césares ou, simplesmente, Os Doze Césares. Começarei pelo princípio, que é por onde começam as melhores histórias (a moda de começar as coisas pelo meio só foi popular no tempo de Camões, e toda a gente se apercebeu rapidamente da impraticabilidade da coisa). Vamos então a Júlio César.

Este é o simpático esqueleto
chamado "Bissexualidade".
Não vou falar das suas conquistas militares e políticas, pois isso é o tipo de coisa que – por enquanto – ainda tem lugar nos programas escolares. Vou falar da pilha de ossos no roupeiro de César: o seu esqueleto de estimação chamava-se "Bissexualidade".

Ora teve o Júlio o azar de, na sua primeira campanha militar, se demorar mais do que seria próprio na corte do rei Nicomedes da Bitínia. Embora pudesse haver mais do que uma razão para tal demora – desarranjos intestinais; a comida e as instalações seriam certamente melhores do que as disponíveis nos acampamentos militares; etc. – César não mais se livraria da suspeita de ter tido "relações impróprias" com o monarca.

Apesar de tudo, Roma era um festim homoerótico.
Os romanos eram particulares neste aspecto. O problema não residia nas "relações impróprias", mas sim no facto de César ter sido a parte dita "passiva" do casal. Mas, ao contrário das histórias infelizes que se ouvem hoje em dia (que um desportista homossexual sofreu horrores no balneário devido à hostilidade dos seus colegas heterossexuais, passando-se algo semelhante com os militares), os soldados ao serviço de César não deixavam de o respeitar e de o admirar, apesar de saberem dos rumores. Faziam com eles, aliás, algo construtivo: inventavam canções.


"Todos os Gauleses César venceu, Nicomedes venceu-o a ele;
Vejam!, agora César cavalga triunfante, vitorioso sobre os Gauleses;
Nicomedes, que submeteu o conquistador, não triunfa."

(Presume-se que os versos soariam melhor em latim.)


De facto, os opositores andavam tão aborrecidos que decidiram
matar César à facada, ainda que isso lhes sujasse as togas.
Porém, os inimigos de César não eram tão flexíveis como os seus soldados, pois andavam extremamente aborrecidos com os trejeitos autoritários do homem. Logo, pegavam em qualquer coisa que pudesse manchar a sua reputação junto do povo romano: diziam que César era "a rainha da Bitínia", que era "o homem de todas as mulheres, e a mulher de todos os homens", que era careca. Curiosamente, o que mais ofendia César eram as alusões à sua lustrosa careca. Fragilizado por este cruel ataque à sua masculinidade, passava muito tempo a pentear os seus poucos cabelos para a frente, de modo a disfarçar as generosas entradas.

Notem-se as sobrancelhas
impecavelmente arranjadas.


Já que nos detivemos nos assuntos capilares, devo dizer-vos que Júlio César foi o primeiro metrossexual da História: Suetónio afirma que o ditador cuidava demasiado da sua aparência, submetendo-se mesmo à forma de tortura que, até há pouco, era quase exclusiva das mulheres do nosso tempo: a depilação.